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Literatura
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ma prece

Pai, perdoai-me, porque pequei.

Lembrai de quando me colocastes neste galinheiro? Por Vosso desígnio, um ovo desigual fora chocado juntos aos outros. Ainda assim, posso afirmar ter sido bem acolhido, apesar do meu porte desengonçado e das estranhas penugens pretas que me afloravam. Era já indício de Vossa mercê.

Sendo criado com galinhas, me habituei a elas. Sabei certamente como cisquei na poeira, as patas vermelhas disformes frente ao desfile das imagens douradas da inocência... Jovenzinho, um impulso desconhecido me inspirou a tentativa de comer a cabeça de um pintinho, meu irmãozinho. Por sorte, um coro de pios e cacarejos me restituiu a razão. Nessa época também surgiram as escuras asas capazes de encobrir o dia. Sabia-me diferente, e eles também. Contudo, a vida em comum era possível.

Minha redenção não tardaria: uma voz trovejava, “por que não me segues?”, Vosso chamado se me apresentara como a mais obscura tempestade elétrica. Ao ver parte da população fulminada por um corisco, revelava-se a vocação de levar a fé a este insuspeito antro.

Antro de almas perdidas! Vivendo em poligamia com aquele que chamam líder, um galo idólatra, o qual toda manhã faz reverência ao sol. Não sabe o tolo que o seu deus é uma das Vossas criaturas. Triste do povo que precisa da precipitação da Lei para despertar para a Verdade.

E tenho semeado, falado desta carne que é morte em vida, a ouvidos moucos. Pensara que assim eu poderia orientá-los a desprezar os corpos, destinados às moscas sarcófagas e a tantos outros carniceiros. Deste caminho é que me surge a dúvida: se por vezes me acredito um vão vaga-lume, ainda assim cioso de portar uma luz genuína, por outras reconheço em mim o instinto do verme paciente, despreocupado em sua espera.

Pois, Pai, eu periclito! Durante as exéquias de uma velha, a galinhada comentou o estranho brilho religioso que assomou a meus olhos... era em verdade um frenesi vindo das carnes pútridas, o odor inebriante... depois, rezando terço, consegui me acalmar.

Sonhos começaram a assaltar-me, não aqueles em que a fúria predadora se refastela no sangue borbulhante do inocente... não, neles apareço exercitando... perdoai-me, Pai... com discrição, a necrofilia... digo, necrofagia.

Em outro, recorrente, surjo planando brisas mornas, pleno como um anjo, sentindo os eflúvios da decomposição, reconheço de repente nosso galinheiro, arremeto e pouso. Dentro encontro todos as galinhas mortas, verdes de podres, salpicadas de moscas...

Notaram minha perturbação. Cacarejam, me chamam de envenenador da vida. Meu Deus!, e me olham com desconfiança, tramam às escondidas.

Ora, a nós, Vossos servos, foi dado o segredo dos ritos fúnebres e da consolação da morte. Portanto, sigo apenas o caminho que trilhastes para mim.

Como posso ser inclinado ao abjeto, ao fétido, e ao mesmo tempo Vos adorar?

Por favor, ajudai-me a compreender Vossos desígnios, o porquê da minha presença aqui, este teste à minha fé... Temo não estar à altura de suportar um martírio pelos gentios.

Ajudai-me a não fraquejar, amém!